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A união entre ciência e tradição vem mudando a realidade das comunidades quilombolas do nordeste do Pará. Com apoio da Embrapa, a produção artesanal de farinhas à base de cará, araruta, banana e outros ingredientes típicos da sociobiodiversidade amazônica ganhou potencial de escala, qualidade e preparo agroindustrial, abrindo caminho para novos mercados e geração de renda — tudo sem abrir mão da floresta em pé.
A transformação foi possível graças ao Projeto Quirera, a primeira iniciativa de inovação social da Embrapa no Pará, desenvolvida em parceria com a Rede Bragantina de Saberes e Sabores . O coletivo reúne agricultores, associações e cooperativas em mais de dez municípios da região Bragantina e aposta na força do conhecimento tradicional aliado a tecnologias simples, criadas com comunidades locais e para elas.
A proposta é diferente do modelo tradicional de difusão de tecnologia: aqui, os saberes locais orientam o desenvolvimento técnico, num processo de escuta, respeito e construção coletiva. O resultado mais visível está nas agroindústrias comunitárias: nas quais antes se produziam dez quilos de farinha por semana com altas perdas e trabalho pesado, hoje são processados até 40 quilos com alto padrão de higiene, qualidade nutricional e conservação.
Dessa forma diferenciada de fazer ciência, renasceram farinhas sem glúten à base de cará branco, cará roxo, araruta, banana, pupunha e tucumã, materiais-primas que comumente se perdiam nos períodos de safra ou não se cultivavam mais nas áreas de plantio. Esses alimentos atendem a um nicho diferenciado de consumo e ainda são mais nutritivos que similares encontrados no mercado, com múltiplas possibilidades de uso, desde produtos de panificação a shakes e o que mais a criatividade gastronômica permite.
Inovação social, transformação de territórios tradicionaisA Embrapa tem investido em inovação social como estratégia para ampliar o acesso de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares a tecnologias e conhecimentos capazes de fortalecer suas atividades produtivas ao mesmo tempo no que respeita aos saberes e territórios desses grupos. O pesquisador da Embrapa Agrobiologia (RJ) Mauro Pinto , acompanha de perto os projetos da Empresa em todo País que têm esse modo especial de fazer ciência. Ele destaca que a parceria com organizações sociais é essencial para atender às especificidades territoriais e gerar resultados positivos. Ele reconhece que, por diversas razões, as comunidades têm dificuldade de acesso a tecnologias e esse é o grande desafio. “A Embrapa estimula e vem fortalecendo ações que privilegiam a utilização de abordagens de construção coletiva de conhecimentos e tecnologias como estratégia para fortalecer os processos de inovação nos territórios, no intuito de gerar valor e impactos positivos às comunidades envolvidas e a toda a sociedade”, declara o científico. |
Historicamente ligadas à produção de farinha de mandioca — base da alimentação local —, as comunidades rurais quilombolas da região também desenvolveram, de forma artesanal, farinhas de outras fontes como banana, milho, puba, cará e até a multimistura, uma mistura de farinhas usadas no combate à desnutrição infantil. Com o tempo, essas práticas se tornaram raras ou restritas ao consumo doméstico.
A criação da Rede Bragantina (foto à direita), no fim dos anos 2000, começou a reverter esse cenário. As farinhas voltaram a aparecer em feiras e eventos na capital paraense. Mas o salto de qualidade só veio com a parceria e inovação social resultando em adequações tecnológicas e boas práticas em todo o processo de fabricação.
"Antes, secar a matéria-prima era um problema, principalmente no inverno. Agora, com os equipamentos, conseguimos manter a produção com menos desperdício", conta Leiane Nascimento, jovem liderança da agroindústria Atavida, uma das beneficiadas pelo projeto. Lá, são produzidas farinhas de banana, cará branco, cará roxo, araruta, pupunha e tucumã, todas sem glúten e com alto valor nutricional.
A padronização e melhoria da higiene também foram destaque. O corte manual foi substituído por máquinas de fatiar, e a secagem – antes vulnerável à umidade – agora é feita em estufas fechadas, uma elétrica e outra solar, esta com lona e policarbonato, ideia das agrícolas. "A qualidade da farinha melhorou muito. Agora sabemos armazenar, secar e processar corretamente. O produto dura mais e fica pronto para a prateleira", conta Nascimento.
Além do ganho técnico, o projeto resgatou alimentos ameaçados de desaparecimento dos sistemas produtivos, como o cará e a araruta, fortalecendo a sociobiodiversidade amazônica e a segurança alimentar das comunidades. Para Nazaré Reis, assessora técnica da Rede Bragantina, a comunidade passou a olhar para a floresta com mais atenção. “Se antes pensadom em desmatar, agora plantam e entendem que preservar garante renda e alimentação”, observa.
O diferencial do Quirera e dos projetos de inovação social foi tratar a comunidade como parceira desde o início. "O conhecimento tradicional teve o mesmo peso da ciência em todo processo. Ouvimos e adaptamos soluções às necessidades locais", destaca Laura Abreu , pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental (PA) e coordenadora do projeto. A ausência de equipamentos industriais e a distância dos centros urbanos exigiam criatividade técnica e para isso, secadoras elétricas já criadas por outras Unidades da Embrapa, recebiam resistências de fritadeiras elétricas. Ventiladores comuns e carrinhos de padaria foram transformados em tecnologia agroindustrial de baixo custo e fácil manutenção.
O secador elétrico desenvolvido pela Embrapa Agroindústria Alimentos é um exemplo. Compacto e eficiente, pode ser operado por técnicos locais e adaptado para funcionar com energia solar, gás ou biomassa. Com ele, a secagem, que levava dias, agora leva poucas horas, aumentando a produtividade e melhorando a segurança sanitária dos alimentos.
Para a Embrapa, projetos como o Quirera representam um avanço no modo de fazer ciência. “É uma ciência que dialoga, que permite que as soluções nasçam do território e que a inovação não precisa ser cara, mas precisa ser útil e replicável”, afirma Abreu.
Para as comunidades, o ganho é múltiplo: renda, autonomia, segurança alimentar e fortalecimento cultural. “As mulheres voltaram a produzir, os jovens se interessaram de novo pelo campo, e a farinha que antes era só para casa agora tem valor de mercado”, celebra Nazaré.
Já para a bioeconomia amazônica, a iniciativa mostra que o futuro passa pelo respeito ao saber local, pela agregação de valor aos produtos da floresta e pela valorização dos modos de vida tradicionais. “É possível produzir com tecnologia, sem desmatar, respeitando o tempo das pessoas e da natureza”, reforça Nazaré.
Ao transformar saber tradicional em tecnologia útil, acessível e replicável, o projeto mostra um novo caminho para o desenvolvimento rural no Brasil. Um caminho em que ciência e cultura local caminham juntas — e em que uma simples farinha de banana pode carregar o sabor de toda uma revolução. Por enquanto, a transformação já pode ser vista nos olhos de quem, com orgulho, oferece um mingau de farinha de banana ou um bolo de cará e pode dizer: “essa é nossa ciência também”.
Publicações científicasAs melhorias no processo agroindustrial para a profissionalização das farinhas sem glúten dos produtos oriundos da sociobiodiversidade amazônica estão nos artigos Obtenção e caracterização de ferinhas multiuso e seus produtos de panificação, publicado recentemente pela Revista Aracê; e Efeitos das adequações tecnológicas na qualidade das farinhas da agricultura familiar, Revista Caderno Pedagógico |
Kélem Cabral (MTb 1.981/PA)
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Clénio Araujo (MTb 6.279/MG)
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