O Salmo 22 é uma das passagens mais comoventes e profeticamente significativas de todo o Antigo Testamento. Tradicionalmente atribuído a Davi, este cântico é uma jornada dramática que se inicia no mais profundo abismo do sofrimento e do abandono, culminando em uma poderosa declaração de louvor e esperança universal. Sua importância é imensurável para o Cristianismo, pois seus versos são um espelho detalhado da Paixão de Cristo, sendo diretamente citados por Jesus em seu momento de maior agonia na cruz.
O salmo se divide em duas partes distintas e marcantes: um lamento intenso e visceral (versículos 1-21) e um hino de louvor e exaltação que se expande para todas as nações (versículos 22-31).
O salmo começa com um grito lancinante que ecoa através dos séculos: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?". Estas são as mesmas palavras que Jesus proferiu na cruz, conforme registrado nos Evangelhos de Mateus (27:46) e Marcos (15:34). Este clamor inicial não é um sinal de falta de fé, mas a expressão máxima da angústia de alguém que, em meio a um sofrimento excruciante, sente-se completamente abandonado por Deus. O salmista descreve um silêncio divino que é ensurdecedor: "Deus meu, clamo de dia, e não me ouves; de noite, e não tenho sossego" (v. 2).
Apesar do sentimento de abandono, o salmista contrapõe sua dor com a santidade e a fidelidade histórica de Deus, que sempre foi o refúgio dos seus antepassados (vv. 3-5). Essa lembrança agrava ainda mais seu estado presente.
O que se segue é uma descrição gráfica e humilhante do sofrimento físico e psicológico do salmista, que se tornou um roteiro profético da crucificação:
Desprezo e Zombaria: "Mas eu sou verme e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo. Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça" (vv. 6-7). Isso reflete a zombaria que Jesus sofreu dos soldados, das autoridades e dos que passavam pela cruz. A provocação "Confiou no SENHOR, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer" (v. 8) é quase idêntica às palavras dirigidas a Cristo (Mateus 27:43).
Agonia Física: O salmista descreve seu corpo em colapso com uma precisão impressionante:
"Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram" (v. 14), sugerindo o deslocamento dos membros durante a crucificação.
"O meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas" (v. 14), uma possível alusão à insuficiência cardíaca ou a uma angústia mortal.
"A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar" (v. 15), o que corresponde à sede intensa de Jesus na cruz ("Tenho sede", João 19:28).
"Traspassaram-me as mãos e os pés" (v. 16), a descrição mais direta e impressionante da crucificação, escrita séculos antes de os romanos popularizarem este método de execução.
Humilhação Pública: "Repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre a minha túnica" (v. 18). Este ato, realizado pelos soldados romanos ao pé da cruz de Jesus, é um cumprimento literal e detalhado desta profecia, conforme registrado em João 19:23-24.
Em meio a essa desolação, o salmo sofre uma transformação notável no versículo 21. O pedido de socorro ("Salva-me da boca do leão") é seguido por uma afirmação de fé: "Sim, tu me respondeste". A partir deste ponto, o tom de lamento cede lugar a uma explosão de louvor triunfante.
O salmista, agora liberto, declara que anunciará o nome de Deus "aos meus irmãos" e o louvará "no meio da congregação" (v. 22). Este louvor não se restringe mais ao indivíduo, mas se expande em círculos cada vez maiores:
Para a Comunidade de Israel: Ele conclama a "semente de Jacó" e a "semente de Israel" a glorificar a Deus, pois Ele "não desprezou nem abominou a aflição do aflito" (vv. 23-24).
Para Todas as Nações: A visão se alarga para uma escala global. "Os confins da terra se lembrarão e se converterão ao SENHOR, e todas as famílias das nações adorarão perante ti" (v. 27). O sofrimento do justo resulta em uma redenção que alcança toda a humanidade.
Para as Futuras Gerações: O salmo termina com uma visão profética de que a história da justiça de Deus será contada de geração em geração. "Uma posteridade o servirá; falar-se-á do Senhor à geração futura. Anunciarão a sua justiça ao povo que há de nascer, porquanto ele o fez" (vv. 30-31).
O Salmo 22 é muito mais do que o lamento de um homem. É um mapa da jornada redentora, do sofrimento à glória. Para os cristãos, ele demonstra que o abandono sentido por Cristo na cruz foi real e profundo, mas não foi a palavra final. A ressurreição transformou o grito de dor no hino de vitória. O sofrimento do Messias, detalhadamente profetizado, tornou-se a fonte de salvação para todos os povos da Terra, cumprindo a promessa final do salmo: a justiça de Deus seria declarada a todas as gerações, "porquanto ele o fez".