Há duas semanas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) começou a julgar um crime que está sem respostas há 33 anos: a Chacina de Acari.
Em julho de 1990, onze jovens da comunidade desapareceram em Magé, na Baixada Fluminense. Familiares das vítimas pedem que o Estado brasileiro seja responsabilizado, já que um grupo de policiais militares e civis é suspeito de ter sequestrado e matado os jovens.
A procuradora de Justiça Eliane de Lima Pereira participou como perita da audiência que aconteceu em Bogotá, na Colômbia. Ela falou com a Agência Brasil sobre o andamento do processo e a questão dos desaparecimentos no país.
Além de ter exercido os cargos de assessora de Direitos Humanos e Minorias do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e de coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID/MPRJ), Eliane desenvolve uma pesquisa de doutorado que aborda as chacinas de Acari e da Favela Nova Brasília (1994).
Segundo a procuradora, a Chacina de Acari virou uma referência para todos os que analisam e debatem desaparecimentos no Brasil, por envolver recortes claros de raça, gênero, idade, classe e território.
“A década de 1990 pode ser vista como uma transição para o estado democrático de direito. Nesse período, tivemos muitas violações graves de direitos humanos. A Chacina de Acari tem traços que são visíveis ainda hoje em outros casos. A maioria dos desaparecidos é homem, jovem, negra e mora em territórios desprovidos de questões básicas de cidadania. Isso mostra claramente que existem categorias mais vulneráveis ao desaparecimento.”
A procuradora usa como base os dados do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid). Eles são coletados pelos ministérios públicos de cada estado. Na última consulta, em 24 de outubro deste ano, foram registrados 95.307 casos em todo o país. Entre as pessoas declaradas desaparecidas, 60% eram homens, 54% eram pretas ou pardas e 55% tinham entre 12 e 30 anos.
O Plid foi apresentado à Corte Interamericana como um exemplo de política de enfrentamento aos desaparecimentos no Brasil.
“O programa foi criado em 2012 e lida com esse problema como uma questão que ultrapassa a esfera criminal. Alcançamos bons resultados no Rio e assinamos, em 2017, um acordo de cooperação técnica que implementou o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid)”, conta Eliane.
O caso de Acari foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2006. O processo terminou com decisão em favor das vítimas e recomendações ao Estado brasileiro. Entre elas, oferecer apoio psicológico às famílias das vítimas, fazer relatório sobre a atuação das milícias no Rio de Janeiro e estabelecer políticas públicas e leis para evitar violações de direitos humanos.
A Comissão entendeu que essas recomendações não foram cumpridas e passou o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2022.
A primeira audiência pública aconteceu no dia 12 de outubro. O Estado brasileiro fez um reconhecimento parcial de responsabilidade sobre o caso, voltado especificamente pelos assassinatos de Edméa da Silva Euzébio, líder do movimento Mães de Acari, e de sua sobrinha Sheila da Conceição, em 1993. O movimento ficou conhecido pela ação das mães dos desaparecidos que passaram a investigar, reunir provas e cobrar providência das autoridades.
O Brasil admitiu que não cumpriu com a obrigação de solucionar os assassinatos das duas mulheres em prazo aceitável, depois da denúncia do Ministério Público em 2011. Mas em relação ao desaparecimento dos 11 jovens em 1990, o país disse que houve esforço do poder público nas buscas e que o caso não poderia ser enquadrado na categoria “desaparecimento forçado”, por falta de prova de participação de policiais no crime.
A próxima etapa do julgamento é a entrega das alegações finais por escrito das duas partes do processo. Isso deve ser feito no prazo de um mês a contar dessa audiência de 12 de outubro. Ainda não existe previsão para a sentença, mas a expectativa é de que ela ocorra em 2024.
O termo “desaparecimento forçado” ainda não é tipificado como um crime específico no Brasil. O Senado aprovou, em 2013, um projeto sobre o tema (PLS 245/2011) que foi remetido para a Câmara dos Deputados. Duas comissões aprovaram o texto, mas até hoje ele não virou lei.
O conceito de desaparecimento forçado foi estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na convenção realizada em Belém, no Pará, em 1994. Ele é definido como:
Privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa em reconhecer a privação de liberdade, ou informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.
A procuradora Eliane Pereira diz que o país está em desacordo com as normas e compromissos jurídicos internacionais. Aprovar a tipificação legal do crime seria fundamental para impedir que casos de violência e desaparecimento como os de Acari ficassem impunes.
“Desde 1998, o Estado brasileiro assumiu o compromisso de se submeter à jurisdição obrigatória da Corte Interamericana. Em 2010, na sentença do caso Gomes Lund [desaparecido na ditadura], a Corte determinou que o país deveria adotar providências para tipificar o delito de desaparecimento forçado. E nada foi feito até hoje. Do ponto de vista prático, temos problemas de investigação desses crimes, pois é muito mais provável que ocorra uma situação de impunidade do que conseguir, pela lei atual, uma condenação de um homicídio sem o corpo”, explicou a procuradora.
Edição: Denise Griesinger
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