
O Canal da Piracema é uma estrutura construída pela Itaipu Binacional para permitir a migração dos peixes do Rio Paraná, que foi interrompida pela barragem da Usina. Ele atua como um corredor ecológico, garantindo que espécies migratórias completem seus ciclos reprodutivos. Monitoramentos realizados no local revelam variações naturais na abundância das espécies de peixes: em 2022, houve migração recorde de pintados; em anos seguintes, grandes cardumes de piracanjubas – espécie criticamente ameaçada – foram observados; e neste ano destaca-se a movimentação de dourados jovens. As informações coletadas demonstram que as populações de peixes se mantêm saudáveis. As marcações eletrônicas já revelaram, por exemplo, que alguns indivíduos de curimba permanecem por até sete anos na mesma área próxima ao canal, enquanto outros da mesma espécie migram rapidamente – um dourado já percorreu os mais de 10 quilômetros do canal em apenas quatro dias.
Essas informações só são possíveis graças ao monitoramento iniciado em 2004, com uso de tecnologias cada vez mais avançadas. Desde o início do mês, uma nova ferramenta começou a ser incorporada ao sistema. Entre os dias 1º e 5 de dezembro, técnicos das divisões de Reservatório e Áreas Protegidas da Itaipu participaram de um treinamento especializado em cirurgia de peixes no laboratório do Canal da Piracema, nas imediações da usina. A capacitação preparou cerca de 15 profissionais para utilizar uma tecnologia inédita no Brasil: marcadores eletrônicos capazes de registrar batimentos cardíacos e níveis de estresse dos peixes durante seus deslocamentos.
O curso, ministrado pela bióloga Lisiane Hahn, diretora técnica da Neotropical Consultoria Ambiental, abrange desde técnicas de captura e manuseio até procedimentos cirúrgicos para implante dos dispositivos. Durante os dois primeiros dias, a equipe recebeu conteúdo teórico e praticou suturas em estruturas como bananas. Na quinta e sexta-feira, os participantes aplicaram os conhecimentos diretamente em peixes, sob supervisão.
“Itaipu tem sido pioneira em trazer essas altas tecnologias para o monitoramento dos peixes na sua área de atuação. Elas fornecem informações muito importantes e relevantes para o manejo e para a conservação das espécies”, afirmou Lisiane Hahn.
A hidrelétrica adquiriu dois modelos de marcadores. O primeiro registra frequência cardíaca e deslocamento, permitindo avaliar o esforço dos peixes ao atravessar o Canal da Piracema. O segundo armazena dados de profundidade e temperatura, revelando como as espécies ocupam o ambiente do reservatório. Ambos os dispositivos são implantados cirurgicamente e armazenam informações que só podem ser acessadas quando o equipamento é recuperado. “Essa tecnologia é inédita no Brasil para avaliar o grau de estresse que os peixes estão submetidos durante os seus deslocamentos, principalmente aquelas espécies migradoras que precisam subir os rios todos os anos para concluir o seu processo de reprodução”, explicou a bióloga Caroline Henn, da Divisão de Reservatórios da Itaipu, responsável pela coordenação do projeto.
Tecnologia depende da colaboração de pescadores
Os marcadores eletrônicos utilizados no projeto – chamados de biologgers cardíacos – são pequenos dispositivos brancos implantados próximo ao coração do peixe. Como não transmitem dados em tempo real, dependem da recaptura para que as informações sejam extraídas.
Por isso, a participação dos pescadores é fundamental para o sucesso da pesquisa. Aqueles que capturarem peixes marcados e devolverem os dispositivos à Itaipu receberão um kit de brindes completo, incluindo camisa, capa de chuva e bolsa térmica. A hidrelétrica planeja divulgar amplamente a iniciativa por meio de cartazes e redes sociais, em parceria com o Instituto Neotropical de Pesquisas Ambientais, que mantém convênio com a usina até 2028 para monitoramento da pesca junto às colônias de pescadores.
A soltura dos peixes marcados está prevista para acontecer após o final da piracema, quando a pesca volta a ser permitida. Os primeiros dados devem ser analisados no primeiro semestre de 2026.
Bem-estar animal e ética em pesquisa
Todo o protocolo de pesquisa é analisado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Animais da Itaipu Binacional, instituído em janeiro de 2023. Um dos objetivos do treinamento atual é justamente capacitar os membros desse comitê – incluindo médicos veterinários – para avaliar criticamente as metodologias utilizadas em estudos com peixes.
Domingo Rodrigues Fernandez, responsável técnico pela parte de peixes de água doce do Aquário de Foz do Iguaçu e membro do comitê, explica que todas as pesquisas devem garantir que os animais não sofram além do que experimentariam no ambiente natural. Os peixes são sempre anestesiados antes de qualquer procedimento, recebem tempo adequado para recuperação e só são soltos quando estão em plenas condições.
Para a médica-veterinária da Divisão de Áreas Protegidas, Aline Konell, a participação no curso foi essencial e isso demonstra o compromisso da empresa com a fauna aquática e por apresentar técnicas atualizadas de anestesia e procedimentos cirúrgicos, o que representa um diferencial para os trabalhos futuros no reservatório. “Conhecer mais de perto o trabalho dos colegas e conseguir apoiar e melhorar o cuidado da fauna aquática do reservatório foi engrandecedor”, resumiu.
Conservação beneficia toda a cadeia
O conhecimento gerado pelo monitoramento tem aplicação direta na proteção das espécies e, consequentemente, na sustentabilidade da pesca. Segundo Lisiane Hahn, compreender os níveis de estresse dos peixes ao usar o sistema de transposição pode subsidiar melhorias nas estruturas, facilitando a passagem e aumentando as chances de sucesso reprodutivo.
“Sem peixe não tem pesca. O foco de Itaipu sempre foi e será em manter populações saudáveis dos peixes e com isso garantir a pesca. Para isso, a gente precisa conhecer, monitorar e eventualmente propor medidas de manejo”, destacou Caroline Henn.
A tecnologia também permite entender melhor o desafio da próxima geração de pesquisadores: garantir o retorno genético dos peixes do reservatório para as áreas a jusante (parte do rio que fica abaixo de uma barragem). Atualmente, estima-se que o movimento seja predominantemente rio acima, e os novos equipamentos podem fornecer dados cruciais para melhorar essa eficiência.
Cooperação internacional
O projeto conta com colaboração do lado paraguaio da usina. Pela primeira vez, peixes cultivados na estação de aquicultura da margem direita foram marcados com PIT tags (microchips eletrônicos) antes da soltura no reservatório permitindo verificar se eles utilizam o Canal da Piracema. A troca constante de informações entre os dois países fortalece o monitoramento binacional. A Itaipu também mantém cooperação técnica com outras hidrelétricas que utilizam a mesma tecnologia, possibilitando rastrear peixes marcados em diferentes pontos da bacia do Paraná.