
O Brasil vive uma das crises mais profundas em termos de direitos humanos quando se trata da violência contra a mulher. E, dentro desse quadro doloroso, um padrão ainda mais cruel se impõe: as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no país. Não se trata de uma coincidência estatística. É a expressão mais extrema de uma realidade estrutural que combina machismo, racismo e desigualdade social.
O que dizem os números
A noção de racismo estrutural, desenvolvida por autoras como a jurista Kimberlé Crenshaw, é crucial para entender o fenômeno. Segundo essa perspectiva, racismo e machismo não são apenas atitudes individuais, mas se manifestam em instituições, práticas sociais, sistemas econômicos e políticas públicas que reproduzem desigualdades ao longo do tempo.
No Brasil, isso significa que mulheres negras têm:
a) menor acesso a empregos formais e renda estável, o que dificulta romper relações abusivas;
b) maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde, assistência social e justiça;
c) maior probabilidade de viver em áreas com menos infraestrutura pública e maior violência.
Essa combinação aumenta exponencialmente o risco de violência letal. Elas são mais expostas, menos protegidas e, muitas vezes, menos ouvidas.
São José dos Pinhais: uma realidade local que espelha a nacional
Em São José dos Pinhais, município com mais de 330 mil habitantes, localizado na Região Metropolitana de Curitiba, esses desafios se manifestam de forma concreta.
Dados oficiais mostram que, mesmo com leis específicas e campanhas públicas de enfrentamento à violência de gênero, o Brasil ainda contabiliza índices alarmantes de homicídios contra mulheres. Relatórios como o Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que feminicídios, assassinatos de mulheres em razão de serem mulheres, permanecem em patamares que chocam a sociedade.
Quando cruzamos esses dados com recortes de cor/raça, o panorama se torna ainda mais grave: cerca de 68% das mulheres assassinadas por violência de gênero no Brasil são negras, mas apesar de representarem aproximadamente 54% da população feminina.
Esse descompasso revela que a violência letal, muito mais do que um problema de gênero isolado, é também um problema racial e social. Mulheres negras enfrentam múltiplas formas de opressão que se reforçam mutuamente, desde a vulnerabilidade socioeconômica até dificuldades crônicas de acesso a políticas públicas de proteção.
Racismo estrutural e violência letal.
Embora a cidade conte com uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) e um Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), a proteção ainda não alcança de forma equitativa todas as áreas, especialmente os bairros periféricos como Jardim Modelo, Guatupê e Borda do Campo.
Relatos de organizações locais revelam que muitas mulheres não denunciam agressões por medo de retaliação, dependência econômica, descrença no sistema de proteção ou dificuldades de acesso físico aos serviços públicos. Essa subnotificação resulta em uma subestimação dos casos de violência e, consequentemente, em políticas públicas menos eficazes.
Impactos sociais que extrapolam a vítima
O feminicídio não afeta apenas a mulher que perde sua vida. Seus efeitos reverberam em famílias, crianças, comunidades e em toda a estrutura social.
Para as famílias:
a) crianças que perdem suas mães enfrentam risco elevado de traumas psicológicos, evasão escolar e instabilidade econômica;
b) a ruptura do vínculo familiar pode desencadear situações de abandono, sofrimento emocional e maior vulnerabilidade social.
Para a comunidade: a) a violência sistêmica rompe laços de confiança social em bairros inteiros, gerando medo e retração;
b) o estigma associado à violência cria barreiras que limitam a mobilidade social de outras mulheres, inibindo a participação comunitária, o emprego e o acesso a serviços.
O custo dessa violência vai além da dor individual: ele pesa sobre a saúde pública, a assistência social, a educação e o desenvolvimento das comunidades como um todo.
As limitações das políticas públicas atuais
Nos últimos anos, o Brasil avançou em instrumentos legais: a Lei Maria da Penha (2006) e a tipificação do feminicídio (2015) representam conquistas importantes. No entanto, uma lacuna persistente está na implementação consistente dessas normas.
Principais deficiências na prática:
a) falta de articulação entre serviços públicos: saúde, assistência social e justiça nem sempre trabalham de forma integrada;
b) capacidade limitada de atendimento territorializado: muitas cidades, especialmente em áreas periféricas, não possuem atendimento especializado 24 horas ou apoio psicossocial adequado;
c) dados ainda insuficientes: apesar de relatórios oficiais, muitos casos não entram nas estatísticas por falta de denúncia ou registro formal.
Essas falhas significam que políticas públicas, embora existam no papel, não chegam a toda a população que delas precisa, em especial às mulheres negras em situação de vulnerabilidade social.
Caminhos para superar a violência letal
Enfrentar o feminicídio de mulheres negras não é apenas uma questão de justiça criminal, é uma pauta de transformação social que exige ações coordenadas em várias frentes:
1. Educação e prevenção de longo prazo:
a) inserir nas escolas programas de educação sobre gênero, raça e respeito à diversidade;
b) promover campanhas contínuas de combate ao machismo e ao racismo, não apenas em datas específicas.
2. Capacitação de agentes públicos
a) treinar profissionais da saúde, segurança e justiça para reconhecer e responder com sensibilidade às situações de violência;
b) desenvolver protocolos de atendimento baseados na realidade das mulheres negras e periféricas.
3. Fortalecimento da rede de proteção.
a) expandir a atuação de delegacias especializadas e unidades de atendimento 24 horas;
b) estabelecer serviços móveis de apoio em bairros com menor acesso a equipamentos públicos.
4. Autonomia econômica das mulheres.
a) criar programas de inclusão produtiva para mulheres em situação de risco;
b) oferecer incentivos e capacitação específicos para mulheres negras, promovendo acesso a empregos formais e renda estável.
5. Monitoramento e transparência de dados
a) garantir a coleta e divulgação de dados desagregados por gênero, raça e território;
b) criar observatórios municipais e estaduais para acompanhar a implementação das políticas públicas.
A urgência de um pacto social
O feminicídio de mulheres negras não é apenas um problema de segurança pública, ele é um sintoma de desigualdades profundas e persistentes. Cada número é uma vida interrompida, uma família dilacerada, uma comunidade ferida.
O Brasil, e cidades como São José dos Pinhais, têm a oportunidade de atuar de forma integrada, com políticas públicas que considerem as múltiplas dimensões dessa violência, gênero, raça, território e condição socioeconômica.
Como mulher negra, moradora da periferia e profissional que acompanha essas realidades de perto, afirmo com convicção: enfrentar o feminicídio é um imperativo moral, social e político. Não podemos mais normalizar a perda de vidas em função do gênero e da cor. É hora de fortalecer instituições, ampliar redes de proteção, ouvir as mulheres e transformar a dor em ação concreta.
Referências consultadas:
1. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) & Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Atlas da Violência 2023.
2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua / Estatísticas de Mortalidade.
3. ONU Mulheres. Relatórios sobre violência de gênero.
4. Brasil. Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
5. Brasil. Lei nº 13.104/2015 (Feminicídio).
6. Crenshaw, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex (1989).
7. Carneiro, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil.
8. Estudos e relatórios acadêmicos sobre violência de gênero e raça (Ciência & Saúde Coletiva; Psicologia em Estudo; Journal of Interpersonal Violence).
Por Marilene dos Santos de Souza (Dra. Marilene) Bacharel em Direito | Pós‑graduação em Direito do Trabalho, Direito Público e Direito Penal | MBA em Gestão Pública | LLM em Direito Empresarial | Docência em Filosofia e Teologia | Pré‑candidata a deputada estadual (PT–PR)