Composta por 43 bairros, a zona oeste da capital fluminense conta com praias turísticas, parques e reservas naturais e também é palco de grande desigualdade. Trata-se da maior área do município do Rio de Janeiro, com mais de 70% do território, e também da que mais cresce em população. De um lado, está localizada a Barra da Tijuca, bairro com condomínios e shoppings de luxo. De outro, está a maior área de pobreza do município, onde fica, por exemplo, a comunidade Três Pontes, em Paciência, a origem da família que lidera a milícia responsável pelos ataques criminosos desta semana.
A Agência Brasil entrevistou especialistas sobre a região que concentra 41% da população carioca. A zona oeste, considerada o berço das milícias do Rio de Janeiro, tem uma história complexa, que envolve um passado agrícola, especulação imobiliária e uma enxurrada de investimento para a realização de grandes eventos, como as Olimpíadas de 2016.
“A zona oeste é uma região que, por muito tempo, foi uma área esquecida pelos poderes públicos. Então, de fato, não foi, durante anos, uma área de investimento prioritário, em todos os sentidos. Olhava-se para a zona oeste como se fosse uma outra cidade e não parte da mesma cidade. Essa é uma representação social bastante forte no imaginário do Rio de Janeiro e, sobretudo, no imaginário dos grupos mais abastados e do poder público”, diz o pesquisador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) Daniel Hirata.
A pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UrbanoSS-Uerj) Patricia Nicola complementa: “A zona oeste é muita coisa. Ela compõe mais de 70% da área territorial da cidade e a maior parte da população também reside naquela localidade, 41% das pessoas moram na zona oeste. Interessante a gente ver que o que a gente chama hoje de zona oeste, antes, era chamado de sertão carioca”.
A zona oeste é a área do Rio de Janeiro que mais cresceu nos últimos anos. Segundo relatório da prefeitura, entre 2000 e 2013, enquanto toda a cidade teve um crescimento da área construída de 36,6%, na zona oeste, houve uma expansão de 80%. Além disso, entre 2000 e 2010, enquanto a população da cidade aumentou 7,9%, a da zona oeste cresceu 16,8%, o que corresponde a mais de 80% do crescimento total do Rio. A densidade demográfica, ou seja, a quantidade de habitantes por área, ainda é menor que a das demais regiões do Rio de Janeiro.
Esse crescimento chamou a atenção de Patricia Nicola que, no mestrado, pesquisou a região a partir do programa de habitação do governo federal Minha Casa, Minha Vida, onde atuou entre 2011 e 2013. A pesquisa deu origem a artigo publicado na revista Dilemas. No estudo, a pesquisadora reuniu informações sobre a história de ocupação da região que ajudam a entender a atual configuração da área, tanto em termos de estrutura quanto das características da população residente.
Segundo a pesquisa, a zona oeste já foi conhecida como o sertão carioca, nome dado pelo pesquisador e escritor Magalhães Corrêa no livro de mesmo nome, de 1936. A zona oeste passa a se integrar de fato ao Rio de Janeiro, com os limites de hoje, a partir do ato adicional de 1834, que criava o Município Neutro ou da Corte. Com a proclamação da República, a região tornou-se a zona rural do Distrito Federal, até que em 1960, com a transferência da capital para Brasília, passou a ser a zona oeste do Rio de Janeiro. Antes disso, a região chegou a abrigar latifúndios de senhores e senhoras de engenho, fazendas e também quilombos, formados por pessoas escravizadas que fugiam dos latifúndios.
Patricia Nicola cita alguns marcos da urbanização da área, que era uma importante produtora agrícola. A estrada de ferro da região é um desses marcos de crescimento. O surgimento da estrada de ferro no final do século 19 fez com que houvesse uma concentração populacional e comercial perto das estações de trem. Além disso, a construção de novas estradas, muitas delas atravessando montanhas, integrou ainda mais a região ao restante da cidade. Outro eixo de expansão foi a construção da Vila Militar, entre 1904 e 1918, destinada a ser um bairro com escolas, jardins, praças e toda a infraestrutura para atender militares e suas famílias.
A partir da década de 1960, o então governador Carlos Lacerda iniciou o programa de remoção de favelas e reassentamento de famílias faveladas, transformando a zona oeste em local de expansão da cidade para assentamento da população de baixa renda.
“Na década de 1960, começa-se a construir habitações populares, de forma específica, para a população de baixa renda”, diz. “Com esse vetor de produção habitacional, a zona oeste começa a crescer e cresce não só o território, mas a população. E que população é essa [É] essa população removida de favelas. Favelas de Copacabana, da Lagoa [ambos bairros da zona sul do Rio] – a Lagoa era uma grande favela que foi removida”, acrescenta.
A pesquisadora conta que essa característica persiste e que observou enquanto trabalhava no Minha Casa, Minha Vida o mesmo movimento que ocorreu na década de 1960. A chegada de pessoas sem uma estrutura do Estado para atendê-las. “Envia para lá mais pessoas e não pensa em equipamentos públicos de saúde e transporte. Principalmente porque, se alguém é deslocado de um ponto para outro da cidade, ele não larga o trabalho. Passa a morar mais longe do trabalho, onde é mais barato. Para se deslocar para o trabalho, isso custa caro. O serviço público não acompanha, o governo não acompanha, não ocupa esses espaços e deixa livre para outras organizações e pessoas ocuparem esses espaços”, analisa.
Outro marco na história da zona oeste é o processo de ocupação acelerado a partir dos anos de 1970. Esse processo, de acordo com Patricia Nicola, foi marcado por uma intensa especulação imobiliária e pela formação da Barra da Tijuca. “Esse marco do planejamento público foi materializado pelo trabalho do arquiteto Lúcio Costa e sua proposta de Plano Piloto para o ordenamento territorial da região da Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá”, diz trecho do artigo da pesquisadora. “A Barra da Tijuca é um dos locais mais valorizados do Rio; o espaço é concebido como mercadoria a ser consumida por aqueles que podem pagar por ela, um 'sonho de consumo' valorizado pela mídia e pelo setor imobiliário”, complementa o artigo.
O pesquisador Daniel Hirata explica que as milícias se consolidam na região justamente por conta da desigualdade e da ausência do Estado em determinadas localidades. “As desigualdades sociais estão no coração do problema de segurança pública, no sentido que elas acabam produzindo condições para o desenvolvimento desses grupos, na zona oeste. A ecologia urbana da zona oeste é diferente da zona sul e mesmo da zona norte no sentido que não tem uma delimitação tão clara entre o morro e o asfalto”, diz.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) classifica os bairros do Rio de Janeiro de acordo com o Índice de Desenvolvimento Social (IDS). Em termos de extensão, a zona oeste concentra a maior área com os piores indicadores, o nível 1, em uma escala que vai até 5, sendo que o IDS 5 representa as melhores condições de vida.
O IDS leva em consideração as condições de moradia, educação e renda, com informações sobre acesso a água, esgoto, coleta de lixo por serviço de limpeza, número de banheiros por morador, porcentagem de analfabetismo, rendimento médio do responsável pelo domicílio, porcentagem de domicílios com rendimento do responsável de até dois salários mínimos e porcentagem dos domicílios com rendimento do responsável igual ou maior que dez salários mínimos.
O artigo A Zona Oeste do Rio de Janeiro, Fronteira dos Estudos Urbanos?, também publicado na revista Dilemas mostra que, em 2008, a zona oeste tinha um terço das bibliotecas e dos centros culturas que a zona sul tinha, mesmo com uma população quatro vezes maior. Em Guaratiba, um dos bairros da região, somente 51,3% dos domicílios tinham acesso à rede geral de esgoto em 2010, enquanto a média de toda a cidade era 93,5%.
As desigualdades são somadas a características de uma área onde a cidade ainda tem grande potencial de crescimento, o que favorece a atuação das milícias, de acordo com o pesquisador Daniel Hirata. “A zona oeste é uma fronteira urbana, uma área para qual estão dirigidas a expansão da habitação, do serviço, e equipamentos urbanos do Rio de Janeiro, e toda essa produção da cidade é parte importante do modelo de negócios das milícias. As milícias atuam no loteamento de terras, na construção imobiliária, na compra e venda de imóveis, na administração condominial, no provimento de infraestrutura, de água, luz, lixo, circulação de produtos como, por exemplo, a água e o gás de cozinha. É a própria produção da cidade que está no coração do modelo de negócios das milícias”, diz o pesquisador.
Hirata destaca ainda a realização de grandes eventos, como as Olimpíadas de 2016, que concentrou grande parte das arenas de competição na Barra da Tijuca. “Naquele momento tivemos uma série de investimentos públicos muito importantes que dirigiram e intensificaram essa fronteira urbana, a expansão urbana em direção à zona oeste. Eles estão presentes nesses locais e, portanto, esse é um momento que favoreceu muito a expansão desses grupos.”
Para ambos os pesquisadores, uma maior presença do Estado na região pode ajudar no combate às milícias. Uma maior atuação, por exemplo, nas áreas de educação, saúde, transporte público, cultura e prestação de serviços públicos impediria que grupos criminosos expandissem a atuação.
“Esse mercado desregulado acaba favorecendo a parasitagem desses grupos para aferição e lucros. Uma presença do Estado nesse sentido seria muito mais eficiente para o enfrentamento desses grupos armados, para garantir esses serviços e equipamentos públicos de qualidade e também preços mais justos para a população residente e com efeito de letalidade muito menores”, diz Hirata.
“É uma parte de cidade que cresce cada vez mais. É uma parte da cidade que merece receber um olhar melhor dos nossos governantes. É uma parte da cidade que merece ser tratada como qualquer parte da cidade, com respeito, com dignidade, com serviços públicos que cheguem àquela população que lá precisa. Serviços de assistência, de saúde, de educação. O Estado não pode chegar à zona oeste somente com uma arma. O Estado precisa chegar à zona oeste com serviços públicos para aquela população que lá mora e vive”, ressalta Patricia Nicola.
Edição: Juliana Andrade
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